‘A gente atravessou o oceano para fugir da guerra, e ela nos pegou aqui no Brasil’, lamenta mãe de Moïse Kabagambe
12/03/2025
(Foto: Reprodução) Júri popular de 2 dos 3 réus foi marcado para esta quinta-feira (13). Família de Moïse Mugenyi aguarda julgamento de 2 dos 3 réus nesta quinta-feira (13)
'Eu só espero que seja feita uma justiça de verdade. A gente atravessou o oceano para fugir da guerra e a encontramos aqui no Brasil, onde buscávamos uma nova vida'.
A fala emocionada é da comerciante Lotsove Lolo Lavy Ivone, de 46 anos, mãe do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, espancado até a morte, no Posto 8, da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, em 2022, quando cobrava uma dívida trabalhista. Nesta quinta-feira (13), a Justiça do RJ julga 2 dos 3 acusados de linchar o jovem.
Moïse foi morto no quiosque onde trabalhava como atendente. O rapaz foi espancado por mais de 10 minutos — com golpes de mata-leão, socos, chutes e madeiradas — e chegou a ter as mãos e pés amarrados por um fio. O jovem estava no Brasil desde 2011, quando fugiu de conflitos armados na República Democrática do Congo.
De acordo com a investigação da Polícia Civil, as agressões começaram após uma discussão entre Moïse e um homem identificado como Jailton Pereira Campos, o Baixinho.
Em seguida, ele foi atacado violentamente. Os 3 homens flagrados pelas câmeras de segurança agredindo o rapaz foram identificados como Fábio Pirineus da Silva, o Belo, Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, o Dezenove, e Brendon Alexander Luz da Silva, conhecido como Tota.
Réus pela morte de Moïse (da esquerda para a direita) Fábio, Brendon e Aleson
Reprodução
Eles foram presos e denunciados pelo Ministério Público do RJ por homicídio triplamente qualificado. No entendimento do órgão, as circunstâncias do crime caracterizaram motivo fútil, impossibilidade de defesa da vítima e uso de meio cruel — tendo Moïse sendo agredido “como se fosse um animal peçonhento”, como escreveu o promotor Alexandre Murilo Graça, autor da denúncia.
A família do congolês conta que Moïse foi atacado no quiosque após cobrar salários atrasados. Já a versão apresentada pelos réus pela morte é de que o congolês, bêbado, vinha importunando vendedores e clientes dos estabelecimentos próximos e tinha tentado roubar bebida do freezer do estabelecimento antes de ser agredido. Os acusados negam que os ataques tenham tido relação com o fato de que Moïse era negro e imigrante.
Em conversa com o g1, a mãe do rapaz lembrou que a vida mudou nos últimos anos e afirmou que “a condenação dos acusados será uma resposta do Brasil para a família”.
“Depois da morte dele, a minha vida mudou. Você não espera que um filho vá antes da mãe. Na vida, a mãe vai antes do filho. [E] Ele [nos] deixou de uma forma brutal. A minha vida não funciona mais como antes. Hoje, por exemplo, eu acordei e parecia que o meu coração estava afogado, algo estranho”, conta a comerciante.
“Chegamos aqui no Brasil para refazer as nossas vidas, em busca de uma vida melhor. Nós estávamos trabalhando. Não estávamos roubando. Parece que é um sonho. Porque, você deixa o seu país fugido da guerra, por conta da violência, e acontece a mesma coisa no Brasil. Quando eu cheguei no Brasil, eu via o país com uma segurança. Quando ele morreu, eu não acreditava. A gente atravessou o oceano para fugir da guerra e encontramos a guerra no Brasil. Eu não acredito [até hoje].”
Moïse era um dos 5 filhos de Lotsove — em 2022 ela se tornou assistente de acusação do processo contra os acusados pela morte do filho.
De camisa regata preta, homem observa o espancamento e depois leva embora o bastão usado para agredir Moïse
“Quando ele era vivo, morávamos numa outra casa. Mas, quando ele foi morto, me mudei. Parece que lá tinha a mão dele em todos os lugares. Eu tinha lembranças dele em todos os locais. Eu voltei lá algumas vezes para ver as coisas, e parecia que ele estava andando pela casa. Vinha lembranças dele de como estávamos vivendo. Quando eu saía para trabalhar, para fazer cabelo, ele ia junto comigo para pegar o trem. Aí, por isso eu saí de lá. Me mudei.”
Lotsove contou que Moïse, na véspera do crime, informou que sairia para trabalhar e cobrar 2 dias de trabalho que o quiosque lhe devia. Ela também afirmou que o filho trabalhava em esquema de comissão e que o pagamento normalmente era realizado no fim do dia, o que foi corroborado por testemunhas.
No entanto, segundo ela, era comum que o quiosque atrasasse a parte das comissões referente às vendas feitas via cartão de crédito.
“Todo mundo sabia que ele ia à praia para trabalhar, para conseguir uma vida melhor. Isso o tornava uma pessoa ruim? Muita gente trabalhava naquela praia. Ele era bêbado? Drogado? Por que não chamaram a polícia? Moïse foi lá para trabalhar. Moïse tentou emprego de carteira assinada, mas não conseguiu. Ele pedia emprego e não conseguia. Ele não gostava daquele serviço, porque trabalhava muito e o dinheiro era pouco, mas ele estava precisando”, diz a mulher.
“Nesses 3 anos, eu sempre esperei que esses meninos pedissem desculpas pelo que fizeram com o Moïse. Eu esperava que eles falassem a verdade. O Moise era amigo deles. Eles passavam o tempo juntos, brincavam, bebiam juntos, conversavam há tempos. Mas mataram o meu filho como mata uma cobra. Às vezes eu lembro [da morte], [as imagens] veem a minha cabeça e é insuportável para o meu coração. Aí, eu pego a roupa dele e sinto o último cheiro dele. Eu coloco a roupa no meu nariz para sentir o cheiro. Falo com ele. Coloco [a camisa usada por ele no dia da morte] no meu coração para eu dormir com ele.”
“Ele não mereceria isso. Nós não merecíamos isso. Ele se foi e estamos sofrendo. Não perdoo quem fez isso. Só precisamos de justiça.”
Julgamento desmembrado
Nesta quinta, o juízo da 1ª Vara Criminal da Capital fará o júri de Fábio Pirineus da Silva e de Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca. O terceiro acusado, Brendon Alexander Luz da Silva, não será julgado nesta sessão. A defesa do réu recorreu da sentença de pronúncia, e o seu nome foi desmembrado do processo originário. O pedido da defesa está em tramitação no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Maurice Mugeny, irmão de Moïse Kabagambe, criticou a defesa de Fábio e Aleson, que afirma que eles atacaram o rapaz em legitima defesa.
“Como matam uma pessoa batendo com taco de baseball e falam que foi legitima defesa? Com as pernas e os braços amarrados, 4 pessoas em cima dele e falam em legítima defesa? Em que lugar do mundo isso seria legítima defesa? Nós viemos fugidos do nosso país porque lá está em guerra. Viemos para cá por conta de perseguição política, para procurar uma vida melhor aqui no Brasil e ele é morto com 40 pauladas? E depois falam em legítima defesa? Como as pessoas podem entender isso? Se não tivesse câmeras ele seria um bandido. Mas existem provas”, destaca Maurice.
“É preciso que seja feita justiça. Será uma desculpa [do Brasil], mas que não trás dele de volta. Não devolve ele. Mas, a condenação é o mínimo que deve ser feito. Que eles paguem pelo que fizeram.”
Moïse Kabamgabe
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O advogado Rodrigo Mondego, que faz parte da Comissão Popular de Direitos Humanos, é amigo da família de Moïse e advogou para eles no começo do processo. Ele destaca que “o mínimo é o estado do Rio de Janeiro e a Justiça darem uma resposta para essa família”.
“É importante ter uma resposta por parte do estado e da justiça. O Moïse trabalhava há anos naquele lugar. As pessoas o conheciam há muito tempo. Nunca houve nenhuma crítica ou denúncia com relação ao comportamento dele naquela localidade. Se tivesse reclamação de que ele era agressivo ou que ele cometia violência, ele não trabalharia há tanto tempo naquela localidade. E segundo, não existe pena de morte no Brasil. Alguém não pode ser morto por estar cometendo algum determinado delito. Então, essa argumentação de que ele estava sendo violento e por isso apanhou até a morte não faz, absolutamente, nenhum sentido. Ele estava reivindicando o pagamento de sua remuneração. Ele estava chateado com isso.”
Em nota, a advogada Flávia Fróes, que faz a defesa de Aleson Cristiano, afirmou que "a motivação das agressões que resultaram na morte de Moïse foi a defesa de um idoso [Baixinho] que estava sendo covardemente atacado por ele". Ainda segundo Fróes, "a defesa tem absoluta confiança que a justiça será feita pelo conselho de sentença".
Por sua vez, a advogada Hortência Menezes, que faz a defesa de Fábio Pirineus, afirmou que o cliente "nunca teve a intenção de matar Moïse, mas agiu para proteger um idoso indefeso, ameaçado por horas". Ainda segundo a defensora, "a morte de Moïse não teve qualquer motivação racial, xenofóbica ou trabalhista. A defesa reforça seu compromisso em trazer à tona a verdade dos fatos e garantir um julgamento justo".
O g1 não conseguiu localizar a defesa de Brendon Alexander.